Prescrições
Você já leu uma história, e sentiu que ela poderia ter sido escrita especialmente para você? Talvez ela tenha dado voz à sua dor, ou te ajudado a se sentir menos sozinho, e fez muito sentido para aquele momento da sua vida? Então você já pode ter tido sua primeira experiência com a Biblioterapia!
Agora descubra o que é essa técnica terapêutica, e como ela pode te auxiliar tanto no enfrentamento e ressignificação das suas angústias emocionais, quanto na busca de possíveis soluções para problemas pontuais que estão te afligindo neste momento.
Histórias que Movem o Mundo
As histórias têm sido uma das ferramentas curativas mais antigas já utilizadas pela humanidade.
Desde os tempos antigos, os homens se reuniam ao redor das fogueiras para compartilhar narrativas que traziam esperança, sabedoria e cura para as dificuldades e as grandes perguntas com que se deparavam.
O tempo passou, o mundo se transformou, mas essa prática nunca mudou. Ainda hoje continuamos nos reunindo, seja no conforto de nossas casas ou em nossas sofisticadas salas virtuais, para contar nossas histórias e procurar fazer sentido da realidade à nossa volta.
As histórias continuam sendo uma ferramenta essencial para dar sentido à nossa existência em todos os níveis.
Sabedoria Antiga
Com a chegada da escrita, toda a sabedoria acumulada nessas histórias, até então compartilhadas apenas de boca em boca, foi aos poucos se tornando mais acessível a mais pessoas. E com isso o valor da leitura assumiu um papel crucial para a nossa sobrevivência.
Ter em mãos o registro definitivo de todos esses relatos revelou também o valor curativo que esse conhecimento exercia sobre os que o liam.
Os primeiros gregos, assim como os egípcios, compreenderam o poder terapêutico da leitura desde o início. Eles mantinham inscrições na entrada das suas bibliotecas que, quando traduzidas, significavam “Lugar de Cura para a Alma” ou “Medicina para a Alma”. Aristóteles mesmo fazia uso da leitura para curar suas emoções e as emoções de seus alunos.
Os romanos também atestaram o valor dos livros e da leitura, especialmente quando lidavam com sua população mentalmente perturbada. Havia entre eles o consenso de que as orações poderiam ser lidas, com grande eficácia, para pacientes que precisavam melhorar sua saúde mental.
Já na Idade Média as leituras da Bíblia e de outros textos sagrados acompanhavam o processo de cura nos hospitais como método terapêutico adicional.
Estavam assim sendo lançadas as bases da Biblioterapia.
A palavra ‘biblioterapia’ se origina das palavras gregas ‘biblion’ que significa livro e ‘therapeia’ que significa terapia. Mas foi apenas no começo do século XX, que o pastor presbiteriano Samuel Crothers combinou essas duas palavras passando a descrever a Biblioterapia como:
“processo pelo qual literatura específica, tanto de ficção quanto de não-ficção, é prescrita como remédio para uma variedade de doenças.”
Em seus anos iniciais, a Biblioterapia era utilizada com mais frequência em instituições psiquiátricas. Freud e Anna Freud, por exemplo, fizeram uso da literatura em sua abordagem psicanalítica.
Durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, passou-se a prescrever livros para ajudar soldados que retornavam para casa e precisavam lidar com feridas emocionais e traumas. Em 1940, a Bblioterapia ganhou mais reconhecimento quando foi formalmente definida no Dicionário Médico Ilustrado de Dorland, um popular livro de referência médica em inglês.
Três anos depois, a pesquisadora americana Caroline Shrodes fez um trabalho de organização da Biblioterapia como proposta científica. A partir daí ela passou a ser amplamente utilizada na Europa e Estados Unidos, na sua forma clássica, sobretudo nas instituições públicas.
No ano de 1966, a Biblioterapia foi oficialmente introduzida no vocabulário médico e definida como o processo do uso da literatura para estimular a mudança cognitiva.
Desde então seu progresso tem sido contínuo e ascendente. Inúmeras pesquisas, artigos, teses, dissertações, e materiais destinados a contribuir para o seu avanço, continuam sendo produzidos ao redor do mundo. Isso devido à crescente procura por suas comprovadas propriedades terapêuticas.
A História Certa
À princípio, a grande maioria dos textos podem ser usados para abordar um problema que um cliente esteja enfrentando com o fim de ajudá-lo a ver sua condição sob uma nova perspectiva.
Fundamentalmente o objetivo do biblioterapeuta clínico é encontrar e prescrever o texto que melhor se encaixe, que melhor satisfaça a necessidade apresentada pelo cliente, e caminhar ao lado dele, através da escuta e do diálogo, apoiando-o no processo de autorreflexão e de aplicação dos insights que a leitura trouxer em resposta às suas próprias dores emocionais.
Gabriel Perissé (2009) ilustra bem a experiência da Biblioterapia quando descreve o que a leitura “receitada” tem o poder de provocar em quem embarca nessa jornada de autodescoberta:
“Lendo, distancio-me dos redemoinhos e dos turbilhões, crio espaço para rever conceitos, redesenhar imagens, redescobrir emoções, tomar decisões, escolher caminhos. Ponho em atividade o pensamento, a memória, a imaginação. Realimento minha crença na liberdade. Fico em paz com minha guerra, como dizia Camões. E se essa terapia se faz preferencialmente pela leitura de obras de ficção, podemos falar legitimamente em terapia literária.”
[PERISSÉ, Gabriel. Noções de Biblioterapia. Revista Educação, São Paulo, n 152, pp. 60-61, 2009]